Há tempos fui ver o filme "Transcendence - a nova
inteligência" onde, quase no fim da história, e em jeito de lição, se diz
que as pessoas têm medo do que desconhecem (situação que, em muitos casos,
impediu o avanço do conhecimento).
Nesse momento preciso, recordei um livro fabuloso da
filósofa e professora de Psicologia da Inteligência SARA PAÍN sobre "A
Função da Ignorância" (que é também o título da obra a que me refiro).
Para ela, a ignorância não significa uma falta de saber mas
sim uma qualidade do pensamento! Aliás, ela esclarece que a ignorância está na
génese do saber! Ou seja, antes do conhecimento tem de haver um
não-conhecimento que, numa explicação mais abrangente, ela qualifica como
fazendo parte do pensamento, habitando no inconsciente.
De facto, se recuarmos na nossa própria experiência de vida
verificamos que deparamos, muitas vezes, com novos conhecimentos de que nem
sequer tínhamos a menor suspeita. E isso conduz ao medo do conhecimento (e não
tanto do desconhecido porque este não se sabe o que é, e, assim sendo, não se
pode ter medo dele, exceto quando já temos sinais e evidências como sucede no
caso de doenças em que somos possuídos pelo medo do que a doença possa
trazer-nos de sofrimento).
Mas voltemos atrás. Porque é que a ignorância é uma
qualidade do pensamento? Parece estranho, não? Ora Sara Paín diz que os nossos
pensamentos funcionam como os instintos visto que são eles (instintos e
pensamentos) que dão forma à realidade onde nos movimentamos (mesmo quando
sejam sonhos, ilusões ou alucinações).
Os instintos e os pensamentos usam uma ferramenta
importante: a memória! Os instintos são ferramentas da memória biológica (já
nascemos com eles, devidamente aprendidos) e os pensamentos servem-se da
memória cognitiva e emocional para se fazerem e darem forma a ideias. Os
instintos ligam-nos ao passado (e à nossa espécie) e os pensamentos ligam-nos
ao futuro (mesmo quando os utilizamos para recordar eventos passados).
Assim, a ignorância situa-se algures entre o passado e o
futuro. Pode manter-se alojada num dos lados da vida (no passado/presente e/ou
no presente/futuro). Ou em ambos. É nesse plano que também pensamos para
podermos escolher, decidir e agir.
Então, no plano psicanalítico e simultaneamente biológico, a
ignorância é também necessária à inteligência! Ups!
É. É usando a ignorância (como qualidade do pensamento) que
o homem procura o saber para reestruturar permanentemente a sua visão (e
orientação espacial-temporal) do mundo. E fá-lo observando, buscando,
construindo e desconstruindo hipóteses, tentando e errando, como um bebé que,
ainda gatinhando, vai descobrindo o mundo impulsionado pela sua
"ignorância" (o que o leva a querer saber mais e pensar, mesmo que
rudimentarmente, sobre o que vê pela primeira vez).
É assim que a ignorância é uma qualidade do pensamento e uma
força impulsionadora do pensamento e da inteligência, funcionando a par e passo
com os instintos de onde vem a energia fundamental para uma vida em ação!
Nesta perspetiva, nunca chame, pois, ignorante a alguém.
Corre o risco de o ignorante ser você (aqui uso a palavra ignorante como um
"não saber").
Complicado? A minha ignorância diz que não.